Novo Código de Processo Penal, se aprovado como está, aumentará impunidade e estimulará violência, alerta comissão especial do MPMG
O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), por meio da Procuradoria-Geral de Justiça (PGJ), instaurou uma comissão especial para acompanhar de perto a tramitação, no Congresso Nacional, do Projeto de Lei (PL) nº 8045/2010, que pretender modificar o Código de Processo Penal (CPP). A medida foi tomada em razão da gravidade das alterações propostas pelo PL, que, caso aprovadas, aumentarão a impunidade e estimularão a violência na sociedade brasileira, como alertam os promotores de Justiça que compõem o grupo.
O promotor de Justiça Wagner Marteleto, um dos membros da comissão, esclarece que, no sistema legislativo brasileiro, é o CPP que define quem deve investigar o acusado, a quem cabe denunciá-lo, como a investigação deve ocorrer, quais são os direitos do réu e como esses direitos podem ser exercidos ao longo de todo o processo. Também é o CPP que prevê as medidas que podem ser adotadas contra o acusado e os limites dos poderes dos policiais, dos promotores de Justiça e dos juízes, além de outras definições.
Trata-se, portanto, de uma lei de extrema importância para a resolução de conflitos sociais e que merece atenção redobrada do Ministério Público e da sociedade, como aponta o promotor de Justiça Rodrigo Iennaco, que também integra a comissão especial do MPMG. De acordo com Iennaco, nas reuniões já realizadas pelo grupo, foram identificados pontos de destaque no projeto de reforma do Código que precisam ser urgentemente enfrentados.
Restrição do poder do Ministério Público nas investigações criminais
Entre as mais preocupantes alterações identificadas no PL pela Comissão está a restrição do poder investigativo do Ministério Público nas questões criminais. A tentativa de mudança se dá na contramão do arquivamento, em 2013, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37/2011, que pretendia tornar privativa da Polícia a investigação criminal, mas que foi rejeitada pela Câmara dos Deputados com amplo apoio popular. A medida contraria também a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que já reconhece o poder investigativo do MP em matéria criminal, em consonância com a Constituição Federal, e traça os limites desse poder.
Como explica Iennaco, os prejuízos da restrição do poder investigativo do MP, caso ocorra, serão imensos para a sociedade porque, ao concentrar mais poder em uma só instituição – no caso, na Polícia –, os mecanismos de controle desse poder e de enfrentamento dos abusos e desvios de conduta são enfraquecidos. “A pretexto de representar mais garantia para o cidadão, a medida, na verdade, diminui os mecanismos de contrabalanceamento do poder em uma democracia e fortalece o estado de polícia. Nesse caso, apenas a Polícia poderá deliberar sobre determinadas matérias”, esclarece.
Impedimento ao julgador de conhecer o conteúdo das investigações
Outro problema grave verificado pela comissão é a restrição ao conhecimento do julgador do conteúdo das investigações, o que poderá afetar principalmente o Tribunal do Júri. Conforme observa Rodrigo Iennaco, na maior parte dos casos de homicídio, só é possível desvendar o crime fazendo-se uma reconstrução do que ocorreu anteriormente na vida dos envolvidos, o que se dá durante a investigação criminal, principalmente no Inquérito Policial, com a produção de provas. Quando os jurados não podem tomar conhecimento do objeto da investigação, o julgamento fica, conforme o promotor, gravemente comprometido. “Se, no Júri, você restringe a possibilidade de debate, entre acusação e defesa, sobre o que aconteceu na investigação, é evidente que os jurados não terão condição de tomar uma decisão que represente o melhor resultado para a justiça, porque terão sido sonegadas informações importantes a eles. Isso impede o debate, à luz do contraditório, sobre as provas produzidas na investigação criminal e como foram reveladas”, alerta.
Exigência de decisões unânimes pelo Tribunal do Júri
Ainda no que diz respeito ao Tribunal do Júri, a comissão considera bastante problemática também a proposta de que os julgamentos ocorram com decisões unânimes dos jurados e de que haja a quebra de incomunicabilidade entre eles, autorizando-os, portanto, a conversarem sobre o caso antes do julgamento. Na avaliação da comissão, a medida contraria a tradição do Júri brasileiro, além de a unanimidade revelar-se impraticável. “É impossível não haver divergência ao resultado de justiça em um crime que envolve relação entre duas pessoas”, considera Iennaco.
De acordo com o promotor, a proposta representa uma cópia mal feita de uma parte do modelo do Grande Júri dos Estados Unidos, onde os jurados atuam ao longo do processo sob a coordenação de um promotor de Justiça, e não apenas no Conselho de Sentença, como ocorre no Brasil. “Isso permite a eles acompanharem toda a formação da verdade do processo, desde o início, deliberando sobre a viabilidade da acusação feita contra a cidadão. O funcionamento do Tribunal do Júri no Brasil é bem diferente, e a deliberação dos jurados se restringe à sessão de julgamento”, esclarece.
Enfraquecimento da democracia
Para a comissão do MPMG que acompanha a reforma do CPP, as mudanças propostas pelo PL, em vez de fortalecerem a atuação das instâncias democráticas responsáveis pela investigação criminal, as enfraquecem e, com isso, estimulam as pessoas a resolverem seus problemas por meio da violência. Em outras palavras, a “fazerem justiça com as próprias mãos”. “Com uma justiça criminal feita para não funcionar, sem discussão das questões técnicas no Judiciário, crescem a impunidade e a sensação de injustiça”, prevê Iennaco.
O promotor Lélio Braga Calhau, por sua vez, registra sua preocupação com a ampliação da sensação de impunidade e com o desrespeito às vítimas de crimes, pois, segundo ele, se a população percebe que a justiça criminal não funciona, tanto a polícia pode se ver desestimulada a atuar quanto incentivada a atuar à margem da legalidade. “E, ainda, se as expectativas das vítimas se frustram sistematicamente, além de não acionarem a polícia, podem, cada vez mais, procurar ‘fazer justiça com as próprias mãos’”.
Para o promotor Rodrigo Iennaco, o que pode auxiliar no combate à violência – e não tem recebido atenção dos legisladores – é, principalmente, o aumento dos investimentos e a modernização da estrutura das instituições que atuam na área criminal. Ele cita o exemplo do sucateamento, por décadas, dos órgãos responsáveis pela identificação de pessoas. “A maioria dessas instituições trabalha da mesma maneira desde o século passado. Se uma pessoa tem um carro em Belo Horizonte, por exemplo, pelo chassi é possível saber a história desse veículo desde a produção e identificá-lo imediatamente em qualquer lugar do Brasil. Porém, se eu prendo uma pessoa em Leopoldina e há registros policiais indicando antecedentes em Belo Horizonte, eu não consigo saber, senão com alguma morosidade e burocracia, se se trata de reincidente ou não, quais são os efetivos antecedentes etc.”, aponta.
A identificação de pessoas presas em outros estados pode, segundo o promotor, ser ainda mais difícil. “Se eu prendo em outro estado uma pessoa que é de Minas Gerais, ninguém sabe quem é ela. E se o MP quiser uma informação que é de outra unidade da federação, às vezes demora um mês, dois meses, três meses para conseguir, apesar da promessa de integração de sistemas, que na prática ainda não funciona como deveria. Há pessoas que são presas sem que se saiba quem são, o que pode levar dias ou até meses para se descobrir”, relata.
A falta de recursos para um trabalho efetivo contra o crime também atinge institutos de criminalística, responsáveis por provas técnicas e científicas. Na investigação criminal, não é diferente o cenário. Conforme Rodrigo Iennaco, em Belo Horizonte, a estrutura atual da Delegacia de Homicídios, uma referência histórica de qualidade na investigação criminal em Minas Gerais, não se diferencia muito da que a guarnecia na década de 1990. A própria estrutura do Ministério Público e do Judiciário para processo e julgamento dos crimes mais graves, especialmente o homicídio, segundo Iennaco, não foi objeto da devida priorização nas últimas décadas. “Então, a gente se pergunta: que tipo de enfrentamento à violência se está buscando, quando nem o crime mais grave recebe o tratamento adequado do Estado? E pior: intenciona-se, agora, no plano legislativo, criar ainda mais embaraço na efetividade do processo penal, com restrição às investigações do Ministério Público e ao conhecimento do que se descobriu na fase de investigação, exatamente nos crimes dolosos contra a vida, em um país que é um dos dez mais violentos do mundo. É um contrassenso muito grande”.
CPP já sofreu várias reformas desde 1988
Também é um ponto de preocupação do projeto em discussão do novo CPP, conforme a comissão de promotores do MPMG, o fato de ele ser um substituto de outro, apresentado em 2010, e que foi praticamente abandonado pelo Congresso em razão das pequenas reformas que foram sendo feitas no Código nos últimos anos. Entre as mais recentes estão as que vieram do chamado pacote anticrime, apresentado em 2019 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública – algumas delas ainda sequer colocadas em prática.
Segundo Rodrigo Iennaco, de 1988 até 2021, o CPP – que é de 1940 – já passou por mini reformas que alteraram todos os temas fundamentais do processo penal, com o objetivo de compatibilizá-lo com a Constituição de 1988. “Já se alterou, por exemplo, o tema de prisão – cautelar, preventiva e em flagrante –, para ampliar garantia do cidadão. Já se alterou tema de recursos, de procedimentos, inclusive o do Júri, tornando-o mais célere e suprimindo o libelo, tornando mais curta a fase de pronúncia. Já se tentou implementar o juiz de garantias, já se aprofundou no sistema acusatório, mudando o controle de arquivamento das investigações. Essa foi a conclusão que, até então, havia minimizado os debates de necessidade de um novo código”.
Na visão do MPMG, a discussão sobre o aprimoramento do sistema criminal deve passar pelo aperfeiçoamento das instituições, com foco na proteção dos direitos da sociedade e na garantia do direito de defesa dos acusados.
A comissão do MPMG de acompanhamento da tramitação do projeto de novo CPP é formada, ainda, pelos promotores de Justiça Luiz Gustavo G. Ribeiro, Luz Maria Romanelli e Leonardo Barreto.
O grupo está à disposição da sociedade e da imprensa para esclarecer sobre como as alterações propostas no projeto de lei poderão afetar a vida dos brasileiros.
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